Criações
REENACT NOW #2 - "A Ilha dos Escravos" (1969 - 2025)

“A Ilha dos Escravos”, uma peça de teatro, foi criada no século XVIII, pela mão imaginativa e aristocrata de Marivaux, como um espaço de confronto entre escravos e patrões, situado algures no universo da Grécia Antiga, onde a inversão de papéis sociais representa um esforço importante de renovação da ordem vigente e uma reflexão acerca da condição humana.
No término da década de sessenta do século XX, entre o cheiro a pólvora que inebriava os estudantes e antecipava abril, o texto do dramaturgo francês é pela primeira vez apresentado em Portugal, livremente traduzido e atualizado pelo TEUC - Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. A trama oitocentista, aprovada pela censura, transforma-se numa reclamação burlesca da liberdade e da renovação do teatro português, que tinha como principais aliados os grupos de teatro académico.
Após algumas récitas, o espetáculo é proibido, porque também a censura havia compreendido que a análise do texto dramático já não bastava para adivinhar as intenções dos inquiridos, porque os processos cénicos utilizados acrescentavam múltiplas camadas, que podiam contrariar tanto os intentos dos censores como do próprio dramaturgo.
Em 2025, no Dia Mundial do Teatro, o espetáculo de 1969 e, consequentemente, a sombra do texto de Marivaux, renascem do arquivo do TEUC, como um exercício reflexivo em torno da (im)possibilidade de reconstituir um objeto artístico que “aconteceu” no passado. Trata-se da segunda edição de REENACT NOW, uma linha de atividade do Visões Úteis, conotada com a prática artística enquanto investigação científica e com o campo dos “Estudos da Reconstituição”. Portanto, um projeto cujo principal objetivo implica a priori uma condição impossível: voltar atrás no tempo.
27 de março de 2025, Dia Mundial do Teatro
Teatro Académico de Gil Vicente (Coimbra) - 21h30
Duração aproximada: 80 minutos
Classificação Etária: M/12
Direção e dramaturgia: Joana Ferrajão (VU, EA, República dos Kágados, TEK) Cenografia: Diogo Barbosa (FLUC, RUC, República dos Inkas, República dos Kapangas) Figurinos: Lavinia Zuccalà (FLUC, RUC, República dos Kágados,TEK) Desenho de luz: Nuno Vasco (GEFAC, TEUC, Thiasos - Grupo de Teatro do IEC/FLUC) Sonoplastia: Nuno Pompeu (RUC e GEFAC) Formação e consultoria de Técnica da Máscara: Alexandre Oliveira Interpretação: Mariana Banaco (EA), Maria Rui Cunha (EA, CITAC, GEFAC e RUC), Zé Ribeiro (EA, CITAC); e o Coro (formandos do Laboratório de Commedia dell’Arte: “A Propulsão das Máscaras”): Ana Teixeira (EA), Carolina Amaral (República dos Fantasmas, ESEC), Catarina Pratas (Coimbra Impro), Chico Guazzelli (FLUC), Filipe Abreu Saraiva (EA), Gil Marques (EA), Inês Machado Bastos (InterDito, Grupo Teatral da FPCEUC), Leka Branco (República dos Fantasmas, FMUC), Raven do Canto (FCTUC, República dos Kágados, TEK)
Fotografia: João Duarte (TAGV) Registo Audiovisual e Design Gráfico, a partir de imagem do Arquivo RTP: Grupo de teatro dos estudantes da Universidade de Coimbra apresenta a peça de teatro A Ilha dos Escravos do dramaturgo Pierre de Marivaux e encenação de Luís de Lima, cuja receitas revertem para o núcleo da Cruz Vermelha da cidade. (Castelo Branco, abril de 1961): Sara Allen (VU)
Apoio à comunicação: Maria Zarro (EA) Apoio à produção: Leonor Gama (EA) e Maria Rui Cunha Apoio à direção do coro: Mariana Banaco Coordenação de Produção: Cláudia Alfaiate (VU) Assessoria Mediática e Gestão de Redes Sociais (VU) - MS Impacto Contabilidade: Helena Madeira (VU) Coordenação Artística e Científica de REENACT NOW: Carlos Costa (VU, FLUC, CEIS20, CITAC) Supervisão Científica de REENACT NOW: Fernando Matos Oliveira (FLUC, CEIS20, LIPA) Direção Artística e Científica da segunda edição de REENACT NOW: Joana Ferrajão
O CEIS20 - Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra e as Edições Afrontamento são parceiros de REENACT NOW
Produção: Visões Úteis em coprodução com TAGV - Teatro Académico de Gil Vicente e LIPA - Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas da Universidade de Coimbra; e em parceria com o TEUC - Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra e a secção de Estudos Artísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Agradecimentos: República dos Kágados e Cristina Grimaldi, José Oliveira Barata, Maria Vitória do Valle, Rafael Petito, Vicente Baptista
* VU (Visões Úteis), EA (Curso de Estudos Artísticos, FLUC), TEK (Teatro Experimental Kagadal), RUC (Rádio Universidade de Coimbra), TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra), GEFAC (Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra), CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), IEC (Instituto de Estudos Clássicos), FLUC (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), ESEC (Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra), FPCEUC (Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra), FMUC (Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra), FCTUC (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra), TAGV (Teatro Académico de Gil Vicente), CEIS20 (Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra), LIPA (Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas da Universidade de Coimbra) ; as afiliações indicadas são presentes e/ou passadas.
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"O arquivo do TEUC acolheu-me de porta escancarada, com a generosidade e a desenvoltura que caracterizam os 87 anos de história que alberga. Mas rapidamente compreendi que era necessário pensá-lo para lá dos limites de uma sala organizada, com objetos devidamente inventariados e conservados. Os papéis perdidos e rasgados, o pó, a humidade das paredes contavam também uma história. Nele encontrei o guião da “Ilha dos Escravos”, o dossier de produção, os documentos de contestação do TEUC perante a proibição do espetáculo. Mais tarde, encontrei um registo em vídeo da RTP e o protagonista do espetáculo de 69, José Oliveira Barata. A partir deles, comecei a pensar a reconstituição do espetáculo.
Reconhecida pelo apreço às tradições e aos preceitos mais ou menos estáveis que regem as instituições coimbrãs, a cidade apresenta um núcleo consolidado de estruturas artísticas e é pontuada por um conjunto de iniciativas efémeras mas inventivas, idealizadas por uma comunidade flutuante jovem que, muitas vezes, acaba por não ter a credibilidade, o tempo e os meios necessários para crescer. Os grupos de teatro académico são, cada vez mais, indicadores por excelência da tensão que se vive entre a permanência de valores e de sistemas de organização comunitários e as constantes levadas de pessoas, que carregam consigo uma busca pela própria identidade dentro de um novo ambiente, com regras e dinâmicas muito definidas.
Tendo em conta a proximidade do espetáculo ao ambiente académico conimbricense, o primeiro passo para a construção da peça passou pela tentativa de reconstituição do tecido social e cultural que permitiu a criação do evento de 1969. No que concerne à equipa artística, houve um cuidado especial em garantir que todos os elementos são ou foram estudantes da Universidade de Coimbra, e estão ou estiveram envolvidos em grupos afetos à academia. Durante o processo criativo, à semelhança do que acontece nos grupos de teatro académico, foi proporcionado um contexto formativo gratuito e acessível a quem dele quisesse usufruir: um laboratório de Commedia dell’Arte “A propulsão das Máscaras”, cujos participantes integram também o espetáculo.
O contexto político hodierno é completamente diferente daquele que a década de sessenta propunha. Porém, a querela entre a Academia Velha, fechada sobre si mesma, e a Academia Nova, capaz de se aliar às lutas sociais e dar corpo à teoria, permanece bem presente e está também no cerne das tensões elencadas anteriormente na cidade dos estudantes. Embora irreproduzíveis, foram mantidas as intenções de denúncia a que o TEUC deu primazia. O prólogo, que foi escrito por Almeida Faria, após a aprovação do texto dramático pela censura, evidencia o investimento ideológico do grupo, escondido por detrás da moral oitocentista refletida na peça de Marivaux, é transportado também para a reconstituição de 2025.
Para este efeito de coerência de intentos políticos, concorre também a tentativa de recuperação da linguagem cénica utilizada no espetáculo por Luís de Lima. A Commedia dell’Arte, que hoje escasseia nas salas de espetáculo e nos currículos, é uma linguagem popular, e, portanto, democrática, que vive do olhar, do corpo do ator, mais do que da palavra, e da utilização da máscara como consolidação de um coletivo."
Joana Ferrajão, Diretora da segunda edição de REENACT NOW
"Os “Estudos da Reconstituição” são muitas vezes associados à revisitação de batalhas e outros eventos históricos; mas desta feita, não se trata de guerra mas de teatro, ainda que hoje tanto se fale do “teatro de guerra”.
Pretendemos contribuir para um aumento do conhecimento do teatro do passado, resistindo ao esquecimento que tende a cair sobre as artes performativas, impedindo-as de se inscreverem devidamente na memória; e o que não está na memória, não está no coração, não está na identidade.
Claro que sabemos que este gesto de reconstituição está condenado ao fracasso - desculpem, é mesmo impossível fazer com que aconteça outra vez - mas acreditamos que nesta tentativa condenada a falhar se encerram possibilidades de (re)conhecimento, em particular através da salvaguarda e ativação dos arquivos de artes performativas, uma responsabilidade cada vez mais presente na agenda do governo e das autarquias.
A primeira edição de REENACT NOW, em 2023, dirigida por Carlota Castro, dedicou-se ao arquivo do FITEI - Festival Internacional de Expressão Ibérica, em particular ao espetáculo “Ibéria Sector 5”, da Companhia Bonifrates.
Agora é a vez de Joana Ferrajão arriscar não só um mergulho no arquivo do TEUC, reclamando a nossa companhia para a viagem, mas também a urgência que o título REENACT NOW tomou emprestada de um espetáculo icónico, também dos anos 60: Paradise Now, pelo Living Theatre."
Carlos Costa, Diretor Artístico do Visões Úteis
"Nos últimos anos, um grupo de investigadores vem consolidando no CEIS20, em associação com o LIPA-Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas, um programa dedicado ao estudo da relação entre arquivo e artes performativas. Esta convergência tem vindo a ocupar um lugar de destaque na criação e no pensamento contemporâneo, desdobrando-se em diversas vertentes, entre as questões metodológicas colocadas pela preservação da memória e os 'reenactment studies', um caminho de investigação e de criação que se identifica com a agenda interdisciplinar do CEIS20. Os trabalhos desenvolvidos conferem atenção especial ao arquivo em movimento e à performatividade do próprio arquivo. Nesta segunda edição do programa Reenact Now, podemos contudo identificar um duplo apelo: o espetáculo A Ilha dos Escravos constitui uma revisitação histórica da peça encenada pelo TEUC em 1969, mas este gesto de 2025 confere também cidadania plena ao momento crítico da sua instanciação original."
Fernando Matos Oliveira, CEIS20 - LIPA
"O TEUC é, desde a sua origem, um espaço de criação e experimentação, mas também de memória. O seu arquivo não é apenas um repositório de textos e registos, é um testemunho vivo das vozes, inquietações e desafios que moldaram o seu percurso. Guardar, preservar e revisitar esse arquivo não é um gesto de reminiscência, mas um ato de resistência: é compreender que cada novo espetáculo carrega em si a história de uma linha contínua que atravessa gerações.
Este espetáculo é um exemplo desse diálogo entre tempos. Um texto antigo, que faz parte dos arquivos do TEUC, ressurge agora numa nova encenação, não só como um ato de reinterpretação, mas também de continuidade. O diálogo entre o presente e o passado reafirma o teatro como espaço de luta e de liberdade. Mais do que um regressar, esta peça reafirma a importância de manter vivos os vestígios do que fomos, para que possamos continuar a reinventar o que somos.
O TEUC vive entre a memória e a criação. O seu arquivo não guarda apenas o passado, mas possibilita o futuro."
Maria Vitória do Valle, Presidente do TEUC
O Teatro Académico de Gil Vicente celebra, este ano, o Dia Mundial do Teatro com um feliz encontro. Não é só o facto de este espetáculo promover um encontro com a memória e um profícuo mergulho no arquivo do TEUC. É, também – e muito, a permanente reafirmação de uma proximidade de décadas com a expressão artística que nasce na academia. Nesta parceria com o TEUC e o Visões Úteis, A Ilha dos Escravos vem, igualmente, estimular as dinâmicas de ensino e investigação em artes na Universidade de Coimbra, dando continuidade ao trabalho que o LIPA – Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas tem vindo a desenvolver a partir do TAGV. Não menos importante é o facto de este espetáculo nos levar a falar e a pensar sobre a liberdade de expressão. Se atentarmos nas palavras que fecham a mensagem deste ano do Dia Mundial do Teatro e que nos interpelam para “uma nova responsabilidade moral e política que emerja da ditadura multiforme da atual Idade Média”, percebemos que o lugar do teatro tem de ser, cada vez mais, um lugar de resistência.
Sílvio Correia Santos, Diretor do Teatro Académico de Gil Vicente