(Não tão) breves notas sobre uma breve ida a Belgrado

(Não tão) breves notas sobre uma breve ida a Belgrado

IETM - Plenário de Outono

À Jenny, à Liz, à Sarah e à Suzana

 

No final do mês de setembro do ano transato, estivemos presentes no Plenário de Outono do IETM – International Network for the Performing Arts, em Belgrado. Foram quatro dias de intercâmbio e convívio com outras estruturas do nosso setor, com colegas a chegarem de destinos tão longínquos como a África do Sul, ou tão próximos – mesmo que podendo estar igualmente distantes – como Lisboa.

Ainda que o principal objetivo desta viagem fosse a participação no encontro internacional supramencionado, a verdade é que os momentos de descoberta da cidade foram tão ou mais importantes. Desde a majestosa Igreja de São Sava, até aos passeios pelas margens do Danúbio – passando pelos enérgicos grupos de jovens que se reuniam noite dentro nas muralhas do Kalemegdan – a respiração da capital sérvia cativou-nos e prendeu-nos ao seu próprio ritmo, entre o antigo e o novo, entre a preservação e a transformação.

Se as visitas que empreendemos por motu próprio propiciaram ocasiões de reflexão não apenas sobre a própria urbe, mas também sobre a forma como nos relacionamos com ela – pensamento que perpassa o nosso quotidiano e o nosso trabalho criativo –, foram aquelas que partilhámos com artistas de outras origens as que mais nos ficam na memória.

Sob o título de Artistic Walks, estes passeios convidavam-nos a fitar Belgrado através dos olhos de habitantes que, generosamente, se dispunham a “emprestar-nos” as suas lentes, aqui entendidas como crenças ou interrogações. Consideramos que vale a pena destacar o primeiro dos que empreendemos, que nos desafiava a encontrar a natureza na cidade e a criar com ela uma sinergia. Pretendia desmistificar a ideia de que o mundo natural está completamente alheado dos centros urbanos, contribuindo para o entendimento de que, se nos abrimos a tal, podemos descortinar o som do vento ou o chilrear de um pássaro em qualquer lugar, até numa rua buliçosa como a de Justino Teixeira.

Era dentro do MTS Dvorana – algo entre um centro de congressos e uma Altice Arena – que se desenrolava a maior parte do programa. Com inúmeros painéis a acontecerem em simultâneo, vimo-nos na obrigação de tomar decisões. Podemos reconhecer que aprendemos algo em todas as conferências e em todos os workshops, mas mentiríamos se não admitíssemos que o fizemos em graus diferentes.

Se, por um lado, no workshop acerca do programa Local Journeys for Change – do qual o nosso projeto Novos Percursos para Campanhã fazia parte – nos deparámos não só com provocações que procuravam melhorar as nossas demandas individuais, mas também com projetos absolutamente incríveis vindos de outras áreas do globo[1]; por outro, como no que versava sobre dramaturgia feminista (The Feminist Pornscapes: Towards Feminist Dramaturgical Thinking), esbarrámos numa ideia algo simplista em torno de um assunto bastante complexo. Não esquecemos, contudo, que os contextos culturais são distintos e que não podemos olhar para os posicionamentos dos e das proponentes à luz das nossas convicções pessoais.

Paralelamente ao plenário do IETM, a capital era abanada pelo BITEF – Belgrade International Theatre Fest, tendo-nos sido proporcionadas oportunidades de visionamento de alguns dos espetáculos em cartaz; e também neste ponto a ambiguidade foi o sentimento reinante.

The Stolen Prince: o nome de uma peça para a infância à qual assistimos. À primeira vista, tudo parecia correto: a pueril plateia ria e interagia com o elenco, a realização plástica estava bem conseguida e – daquilo que conseguíamos compreender – a interpretação parecia cativante. The devil, contudo, was in the details: alguns elementos de caraterização, quer ao nível físico, quer da construção de personagem, caíam violentamente no estereotipo o que, para além de nos deixar algo desconfortáveis, nos levou a indagar acerca do tipo de mensagens que – subliminarmente – estariam a ser passadas àquelas crianças.

Experiência contrária foi a referente a Love – uma criação britânica programada pelo festival –, cuja lotação esgotada nos fez (à boa maneira portuguesa) correr para a entrada de um armazém no porto de Belgrado, local onde a performance ocorreria, na esperança de conseguir entrar naquele que seria um dos eventos mais tocantes da edição de 2022 do BITEF. Lográmos, nos últimos segundos, passar por entre as portas metálicas e ocupar as poucas cadeiras vagas. A beleza e sensibilidade daquilo que presenciámos – uma pungente história acerca da crise da habitação no Reino Unido – valeu toda e qualquer gota de suor que tenha escorrido das nossas testas no longo percurso entre o MTS Dvorana e a marginal do rio Danúbio.

Pese embora tal realidade, não deixamos de ressalvar a aparente falta de organização e articulação dentro da estrutura: havíamos adquirido bilhetes para A World Without Women – monólogo de abertura do BITEF – espetáculo que não aconteceu devido à atriz se ter lesionado de forma incapacitante. Nada de inédito, portanto. O que não fez qualquer sentido foi o facto de a direção do festival não ter procurado avisar quem detinha bilhete não só do cancelamento da apresentação, mas também do seu reagendamento. Felizmente, conseguimos ao fim de dois meses reaver o dinheiro gasto, o que merece a nossa apreciação mais positiva.

Apesar de não termos estado presentes nesse momento – pois voámos ainda no penúltimo dia do encontro –, não podemos ignorar a manifestação, da qual tomámos conhecimento a posteriori, empreendida na conferência de encerramento. Com efeito, para discursar sobre a inclusão de mulheres no setor das artes performativas, o convite foi feito a um investigador em estudos das mulheres e a uma pessoa que trabalha como Drag Queen. Ora, se é certo que artistas Drag são tão vítimas de uma sociedade misógina quanto as mulheres, também o é que as suas vivências não são as mesmas. E se é verdade que um doutorado tem conhecimento de causa mais do que suficiente da matéria que estuda para sobre ela palestrar, é-o da mesma forma que – e roubando a frase aos feminismos latino-americanos – a tu teoria te falta calle. A completa masculinização do painel é totalmente inadmissível. As mulheres na plateia, que constituíam cerca de 2/3 do encontro, insurgiram-se e saíram da sala, apresentado as suas reivindicações à direção do IETM, referindo-se a este episódio como “a gota de água”.

Para terminar – e fazendo-o de forma doce – cabe-nos mencionar que a passagem por este plenário de outono não teria sido a mesma sem as amizades que nele fizemos: a Suzana, que conhecemos ainda no autocarro do aeroporto para o centro da cidade (provando que existe mesmo uma portuguesa em cada canto do mundo) e que nos deu a conhecer um outro lado da Direção-Geral das Artes; a Sarah, cujo trabalho com pessoas com deficiência nos permitiu tirar ilações bastante significativas para as nossas Oficinas Criativas; a Jenny e a sua filha, que nos mostraram ser possível sonhar com outras formas de educação; e a Liz, que nos ensinou a importância de caminhar – que nem uma pirata – sobre uma prancha instável (não tivesse ela trocado a sua casa por um barco a tempo inteiro). À pergunta levantada pela Sarah no momento da despedida – “would you[2] come to an IETM meeting again?” –, respondemos hoje com “yes, but preferably with you”.

 

Carlota Castro

 

[1] Entre estes trabalhos contam-se um que visava alcançar a igualdade de género na Indonésia através do ensino da dança, outro que almejava facilitar a integração de imigrantes italianos no norte da Europa, em particular na Suécia, graças à manutenção das suas história e cultura, .... É de salientar que, após o confronto com o pedido de definir a nossa local journey em duas palavras de entre uma lista de quatro (“comunidade”, “empoderamento”, “educação” e “auto-representação”), a maioria das pessoas se posicionou entre as duas primeiras.

[2] Questão colocada às duas pessoas do Visões Úteis que estiveram presentes neste encontro e para quem esta foi uma experiência inédita, uma vez que elementos da estrutura – que nunca deixou de integrar esta rede internacional – haviam já participado em plenários anteriores (tendo existido uma grande assiduidade entre 2009 e 2018, culminando no apoio à organização de uma edição na cidade do Porto).
De facto, o nosso regresso a este tipo de eventos prende-se não apenas com uma vontade de confraternizar com pares nossos após dois anos de confinamentos e constrangimentos, mas também com possibilidades de acumulação de conhecimentos e experiências para uma geração de artistas mais jovens que vão gradualmente ganhando espaço dentro da nossa equipa. Falamos, em tom de brincadeira, numa espécie de seleção Sub-23, que amiudadas vezes passa de um contexto de formação dada por nós para um de trabalho connosco.