Reenact Now #2 - 2025 / "A Ilha dos Escravos (1969/2025)"
Reenact Now #2 - 2025 / "A Ilha dos Escravos (1969/2025)"
Os Reenactment Studies apresentam-se como ensaio de um novo campo disciplinar, fugindo da influência da museologia e aproximando-se dos Estudos da Performance, do teatro e do património. De um modo geral, os reenactments - que integram há décadas a metodologia de trabalho de etnógrafos e antropólogos - têm tido uma abordagem mais espetacular sobretudo na recriação de momentos históricos emblemáticos, sejam estes uma batalha na Guerra da Secessão ou uma performance de Marina Abramovic. Trata-se de imaginar para encarnar, ou de um modo mais simplista (porque não?), de copiar o passado; o que não é nem simples de fazer - na tensão entre o desejo de criar comunidade e a atração pela fixação de uma narrativa - nem fácil de definir, ora enquanto metáfora, ora enquanto metamorfose.
A segunda edição do Reenact Now tem como ponto de partida o arquivo do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC). Após a pesquisa, foi selecionada a peça “A Ilha dos Escravos”, uma tradução livre de José Villas, do texto de Pierre de Marivaux, que estreou a 19 de março de 1969, em Ovar.
Um mês antes de estalar a crise académica em Coimbra, os vários grupos de teatro afetos à academia coimbrã participavam já de um conjunto de debates em torno da linha de ação da associação de estudantes e do tipo de teatro que deveria vigorar em momentos de repressão política, como atestam os documentos encontrados no arquivo. Foi neste contexto que o TEUC apresentou, pela primeira vez em Portugal, a peça do dramaturgo francês como um espetáculo de marionetas, encenado por Luís de Lima.
O texto da versão francesa é despido da ambiguidade e do “tom de comédia alegórica” originais para denunciar abertamente, na versão portuguesa, a “desigualdade que os homens permitem que reine entre eles”, como advoga o encenador no texto do programa. A “Ilha dos Escravos” foi uma das maiores fintas que o teatro académico fez ao regime. Apesar do seu cariz marcadamente político, o texto foi aprovado pela censura e todas as autorizações tinham sido concedidas para que se efetuasse a apresentação do espetáculo em várias localidades. O espetáculo terá acontecido em Coimbra, Ovar, Aveiro e Castelo Branco, para ser cancelado, pela Censura, no Porto, Guimarães, Braga, Famalicão, Covilhã e Funchal; mais incerto é o que terá acontecido em Torres Novas.
A peça é inaugurada com um naufrágio que atira servos e patrões para a Ilha dos Escravos, o lugar idílico para onde fugiram os escravos que queriam ser livres, e que se distingue das demais ilhas gregas pelas leis que ali são aplicadas. Num passado remoto, era imperativo que se matassem todos os patrões que porventura pisassem aquele solo, pela proteção da ordem coletiva. Porém, os tempos foram benevolentes: agora acredita-se no perdão e na reconstrução do indivíduo, pelo que a inversão momentânea dos papéis de escravo e patrão parece suficiente para a manutenção da liberdade. É numa teia burlesca de relações de poder que as personagens se encontram e compreendem, denunciando “o quanto são lamentáveis enquanto realidades sociais, tanto os patrões como os escravos”.
No arquivo do TEUC foram encontrados o guião do ponto, do técnico de iluminação e a versão final do texto apresentado na data de estreia, bem como cartas e outro tipo de documentos que confirmam o atribulado processo de criação e produção do espetáculo, que antecipou as discussões que viriam a ganhar força durante o período da crise académica. Esta documentação foi agora digitalizada com o apoio da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
Durante este processo de pesquisa, várias questões foram levantadas relativamente à preservação e organização do arquivo do TEUC, que levaram a uma discussão mais ampla acerca da manutenção dos arquivos dos vários organismos autónomos da associação de estudantes de Coimbra que se dedicam às artes performativas – CITAC e GEFAC. Os arquivos destas instituições de inestimável valor cultural correm sérios riscos de sofrer perdas irreparáveis e os novos membros reconhecem a urgência de cuidar do arquivo, mas não sabem como o fazer. Uma vez que Reenact Now, além de um programa de investigação, também assume preocupações de transferência de conhecimento, será pertinente, em paralelo à estreia do espetáculo/reconstituição, iniciar uma reflexão acerca destas necessidades.
A apresentação da reconstituição está prevista para 27 de março de 2025, Dia Mundial do Teatro, no Teatro Académico de Gil Vicente, coprodutor desta segunda edição.
A esperada renovação das parcerias, com o CEIS20 - Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra e as Edições Afrontamento, garante a publicação do segundo número da Coleção REENACT NOW, bem como a sua disponibilidade online em acesso livre.
A direção artística e científica de REENACT NOW, uma linha de investigação do Visões Úteis, é de Carlos Costa, com supervisão científica de Fernando Matos Oliveira.
A direção artística e científica desta segunda edição pertence a Joana Ferrajão.