Criações
Arraial de Quimeras
A cenógrafa e figurinista Inês de Carvalho propõe - em março de 2026, e em parceria com a Casa São Roque - Centro de Arte - um olhar sobre os vestígios têxteis de figurinos resultantes de 30 anos de produção teatral do Visões Úteis, dos quais os primeiros 15 (1994 - 2009) conhece como memórias contadas por outros, e os segundos 15 (2009 - 2024) conhece por dentro e por fora, como criadora e colaboradora. Guardados em caixas num par de estantes ou pendurados em cabides, pressionados uns contra os outros em apenas um chariot, as peças que em tempos compuseram os figurinos que (re)vestiram intérpretes afigurando personagens, guardam memória da relação entre corpo e tecido, estados emocionais e transpiração, palcos e viagens, histórias imaginadas de passados e futuros vividos no tempo performativo. E, depois, na imensa duração de todo o tempo de existência, permitido (apenas) pela permanência enquanto arquivo (morto ou vivo?).
No contexto de trabalho do arquivo do VU, a desenvolver em 2024 e 2025, seguindo as pistas das suas descobertas e revelações, este projeto pretende resgatar uma seleção das mais icónicas personagens que habitaram textos e espetáculos, e trabalhar (recuperar) os seus figurinos a partir dos vestígios materiais guardados, alguns deles já transformados ou mesclados entre produções. A preparação desta nova coleção procura “elevar” estes vestígios a “relíquias”, e combiná-los com outra coleção de peças geradas, pelo contrário, a partir dos restos têxteis, das peças indefinidas, rejeitadas, desirmanadas, sem história digna de contar, que serão agora reordenadas e ligadas entre si de modo a criarem novos sentidos e um lugar e uma “natureza” alternativa própria.
A ligar estas duas dimensões têxteis (por um lado as “relíquias” de que se revestiram as personagens, por outro as novas formas “animalescas” compostas de restos) está o conceito de “quimera” – figura de aparência híbrida, mítica e plural, entre o humano, o mitológico e o animal, com a capacidade de reunir entidades díspares numa forma única, maior, heterogénea e luxuriante.
Esta coleção de quimeras lança um olhar autoral sobre o figurino como matéria de arquivo e de (re)criação que desencadeia possibilidades de “trans-figuração”, e poderá ser contemplada num formato expositivo. Figurinos escultóricos e quiméricos em vitrines transparentes bem iluminadas. Contudo, esse mesmo dispositivo serve também um ciclo de momentos performativos, festivos e celebratórios, ativado por jovens intérpretes, que, em tempo real e sem ensaios, são convidados a vestir-se, a transfigurar-se, seguindo apenas algumas indicações que cruzam jogo e acaso – numa espécie de blind date em jeito de arraial performativo e não-normativo.
O poder performativo do figurino é aqui enquadrado e reforçado em três passos: 1) no resgate ao tempo (in)permanente do arquivo; 2) na reconfiguração em modo devaneio (im)possível, sustentável e luxuriante; 3) na recombinação performativa que abre um espaço de experimentação e (re)criação. Corpos jovens vestem tecidos antigos e inauguram novos lugares de criação a partir do figurino – objeto e matéria, tangível e metamórfica, agenciadora de novos sentidos.
(imagem: Representação de um Wolpertinger (paródia de Rainer Zenz da aguarela A Lebre, de Albrecht Dürer, 1502)