... Cidade dos Diários é um pequeno grito para entravar a História “que nos engole”...
Eugénia Vasques
prefácio a Cidade dos Diários, o livro
Estamos numa gare. Cruza-se o espaço a caminho de qualquer lado ou faz-se tempo num espaço de ninguém. Há um cadáver por reclamar. No balcão dos perdidos e achados amontam-se os restos de muitos dias. O homem que apresenta o tempo anda sempre de guarda-chuva e nunca mais chove. Alguém morre e alguém mata.
Estamos a meio de um inquérito. O culpado afinal não tem culpa, mas julga que sim. Já todos esqueceram as vidas que se perderam, menos a vítima que veio de longe. O Chefe quer saber o que se passa. A Luz masca pastilhas mas não consegue deixar de fumar.
Estamos num dia. O Sol está em actividade muito intensa. Caiu o recorde do mundo do salto em altura. Uma desgraça antiga de primeira página acaba em homicídio. Uma mulher tem medo de ficar só.
Numa sala à prova de som, provavelmente o quarto onde vive, um contrabaixista de uma Orquestra Nacional decide contar como é vivida a sua solidão e confidenciar, com ironia amargurada, o seu amor não revelado por uma das sopranos da Ópera. Esta relação platónica encontra no próprio contrabaixo o seu maior obstáculo: instrumento arcaico, que melhor se ouve quanto mais nos afastarmos dele, de aparência hermafrodita, desajeitado e incómodo, o contrabaixo torna-se para este homem no maior empecilho à liberdade e ao amor.
Pelo discurso desta personagem isolada e frustrada, viajamos ainda pela História da música e dos músicos e encontramos uma crítica sagaz à sociedade contemporânea.
Uma pequena cidade vê a sua vida económica florescer quando decide investir na construção de uma estância termal. Mas o espírito harmonioso e optimista que une os seus cidadãos é subitamente abalado quando o médico oficial das Termas faz uma inesperada descoberta: a água está poluída e é uma verdadeira fonte de doenças. Forçados a optar entre o encerramento do próspero negócio termal e a defesa da saúde pública, os diferentes grupos de interesse começam a posicionar-se num jogo de influências e manipulações, onde a verdade e a ética parecem ser secundárias.
O habitante do número 667 daquela rua era um homem absolutamente normal: pai de família, bom profissional, empreendedor. Apenas uma coisa perturbava o doce correr dos seus dias: a estranheza que emanava da casa ao lado, o aspecto bizarro e as movimentações suspeitas do seu vizinho.
Este vizinho do lado transforma-se lentamente na personificação de todo o mal. O seu aspecto e as suas acções são-nos transmitidos pelos olhos de 667 que o observa fascinado, quase com obsessão, a partir de sua casa.
Assim, enquanto nos deixamos seduzir pelo mistério da casa ao lado, enquanto somos atraídos pela possibilidade de nela residir o mal de todos os males, a nossa atenção é tentada a desviar-se do homem que na realidade se vai revelando: 667, o nosso “espião”, é um homem à beira da ruptura, incapaz de aguentar a pressão da família e do trabalho. A “paz” no seio do seu lar, que nos vai sendo apresentada, assenta em tédio e frustração.
Será a “casa ao lado” o refúgio do Diabo, figura essencial para a paz de espírito do homem “normal” / pai de família? Ou apenas um espelho da sua própria hipocrisia e da crescente disfunção na sua vida familiar?